Um dos assuntos mais frequentes em Psicologia tem sido a humanização dos serviços de saúde, esta entrevista de 2006 se mostra atual ao mostrar os desencontros na área médica. Problemas que a Psicologia pode auxiliar na solução e melhorar as relações entre profissionais e profissionais e pacientes.
REVISTA Isto é Entrevista 13-09-2006
Cláudio Cohen "Doente ainda tem medo de
doutor"
Psiquiatra
diz que o médico continua a conversar pouco com o paciente e que os
profissionais mais jovens preferem a tecnologia a cuidar das pessoas
Por Cilene Pereira
O psiquiatra e
psicanalista Cláudio Cohen, 52 anos, é um dos principais especialistas em
bioética do País. Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo, ele está acostumado a acompanhar e a pesquisar as mudanças de conceitos
e verdades que, de tempos em tempos, são feitas na comunidade científica e na
sociedade a partir de novas descobertas. Discussões sobre quando começa e
quando termina a vida, por exemplo, fazem parte de seu dia-a-dia. Há quatro
meses, no entanto, ele se debruça sobre uma questão bem mais específica,
voltada para a compreensão de sua própria atividade profissional. Em conjunto
com seus colegas Eduardo Massad e Linamara Battistella, também professores,
Cohen coordenou uma pesquisa entre seus pares e outros profissionais de saúde
para tentar compreender como eles próprios entendiam a profissão, o paciente e
o ambiente no qual trabalham. Eles chegaram a conclusões surpreendentes.
Algumas delas: a tecnologia hoje atrai muito mais os jovens estudantes de
medicina do que a vocação em si, o doente ainda tem muito medo de falar com o
médico e os profissionais não conversam entre si. “É a primeira vez que fazemos
um trabalho deste gênero. Percebia que essa situação existia, mas ninguém dava
muita atenção a esses problemas. Então resolvemos falar disso de outra
maneira”, conta. Para obter essas conclusões, foram realizadas entrevistas em
profundidade com médicos, professores e diretores de hospitais, além de
discussões em grupo com recém-formados, residentes, estudantes no final do curso
de medicina e outros profissionais de saúde dos níveis superior e médio. A
partir dos achados, o professor espera iniciar uma ampla reflexão entre
médicos, faculdades e instituições de saúde para tentar acabar com os gargalos
que, no fim, prejudicam os profissionais e – o que é mais perigoso – também os
pacientes.
ISTOÉ – A partir da pesquisa, ficou claro que os
estudantes e médicos mais novos entram na carreira seduzidos pela tecnologia e
não pela vocação?
Cláudio Cohen – Sim.
Mais do que a vocação humanista, o que os atrai é a vocação tecnológica. Em
geral, as pessoas estão querendo saber mais de pesquisa. E hoje os jovens
médicos se interessam muito mais em fazer pesquisa científica do que em tratar
pacientes.
ISTOÉ – Isso ocorre em todas as especialidades?
Cohen – Há uma
contradição interessante detectada no estudo. Os médicos acham que deveria
haver mais clínicos gerais, que eles teriam de manter uma relação mais
humanista com o paciente. Mas notamos que, no fundo, o próprio médico acha que
o clínico geral é um subproduto da medicina. Eles pensam que, se ele é clínico,
é porque não era muito bom em
nada. Hoje , o grande médico é
o hiperespecializado. Então, aquilo que o médico considera como o ideal da
profissão na verdade ele próprio não valoriza. E nem a sociedade. As pessoas não
procuram o clínico. É preciso entender que ele é um especialista na sua área
e que se deve começar por ele.
ISTOÉ – O que foi constatado sobre a relação entre
médico e paciente hoje?
Cohen – O
paciente tem medo de dizer as coisas. Acaba contando eventuais problemas para a
enfermeira – e ela não repassa as informações ao médico.
ISTOÉ – Quem revelou isso?
Cohen – Os
enfermeiros, os residentes.
ISTOÉ – Por que ela não conta ao médico o que o
paciente está dizendo?
Cohen – Esse é
um dos grandes problemas da medicina atual, a chamada interdisciplinaridade.
Essa palavra traduz a idéia de que a saúde é a soma do trabalho de vários
profissionais, e não fruto do domínio e das ações exclusivas do médico. Isso
foi estabelecido pela Organização Mundial da Saúde em 1960. Até então, o
conceito de saúde era a ausência de doença. Se esse era o modelo – e quem
cuidava de doença era o médico –, quem cuidava da saúde era o médico. A partir
de 1960, a
saúde passou a ser um bem-estar biológico, psicológico e social, isto é, não
apenas a ausência de doença. Com isso, o médico virou mais um dos, e não o profissional responsável pela saúde. É o
relacionamento entre as disciplinas, a tal da interdisciplinaridade.
ISTOÉ – Mas não há risco de ocorrerem problemas
justamente por falta de comunicação?
Cohen – Sim,
mas a novidade é que hoje não são apenas os médicos que estão sendo
processados. Enfermeiros e hospitais também. Está se vendo que não é só o
médico o responsável.
ISTOÉ – Por que o doente tem medo de se abrir com o
médico?
Cohen –
Baseado na minha experiência, observo que ele ainda tem uma imagem meio mítica
do médico. As pessoas o consideram uma pessoa para a qual só se deve falar as
coisas importantes.
ISTOÉ – E que tipo de informação ele deixa de passar?
Só problemas, complicações, queixas de dor?
Cohen – Não é
só isso. Ele também tem medo de perguntar o efeito colateral do remédio ou de
dizer que não gostaria de tomar um medicamento. Ainda sobrevive a relação
paternalista na qual o médico sabe tudo e o doente não sabe nada. Então, as
pessoas acatam tudo o que o profissional fala. A relação ideal deveria ser
baseada em uma autonomia dos dois, para que eles discutam. E o médico vai
tentar mostrar ao doente por que uma conduta é melhor do que a outra.
"A relação
deveria ser baseada na autonomia. O paciente deve deixar de ser passivo. O que está
em jogo é a saúde dele"
"O médico
acha que falar com a família é mais difícil do que com o doente. Ela pergunta o
que o paciente não questiona"
ISTOÉ – E que conseqüência tem isso para
o paciente?
Cohen – Pode haver equívocos. O doente pode ficar com medo de
ingerir o remédio, não tomá-lo ou usá-lo na dose errada. Além disso, tem medo de contar que usa terapias complementares.
lado, pela obrigação de atender tantos pacientes, o médico não tem tanto tempo para ficar respondendo. É mais ou menos como quando vamos ao banco e queremos investir nosso dinheiro. O gerente nos diz para investir nisso ou naquilo. E não questionamos se ele não acha que outra coisa seria melhor.
ISTOÉ – Mas há uma responsabilidade do médico nisso, não?
Muitos se queixam de que ele, de maneira geral, não suporta ser questionado ou
mesmo discutir uma dúvida do paciente...
Cohen – Nas
gerações mais jovens isso está mudando, mas entre os antigos esta postura
prevalece. Por outro
ISTOÉ – O sr. acha que o paciente deve sair dessa
situação passiva?
Cohen – Não
acho, tenho certeza. Ele precisa sair, ser ativo como o médico. Afinal, o que
está em jogo é a saúde dele. É o interesse dele próprio. E às vezes ele teme
não ser mais atendido por reivindicar seus direitos.
ISTOÉ – Este é um comportamento mais comum entre os
pobres, que dependem dos serviços públicos e temem perder a única chance de
atendimento, ou também existe entre os mais ricos?
Cohen – É um
problema cultural, independe das classes. E é um fenômeno brasileiro. Temos
pouca noção dos nossos direitos e deveres. Somos um pouco submissos, inclusive
como pacientes.
ISTOÉ – Outra descoberta da pesquisa foi a de que o
médico prefere falar com o paciente a conversar com os familiares. Por quê?
Cohen – O
médico tem dificuldade de falar com os familiares do doente. Acha que eles são
mais difíceis do que o doente. A família acaba fazendo aquelas perguntas que o
paciente não faz.
ISTOÉ – Então, mais uma vez, parente é serpente?
Cohen – Sim.
ISTOÉ – Mas os médicos se queixam disso?
Cohen – Dizem
que preferem falar com o paciente. E que o melhor seria outro profissional
lidar com a família. A psicóloga, a assistente social, dependendo do problema
que possa estar associado.
ISTOÉ – Mas de novo voltamos à questão. Ele se
incomoda com os familiares, mas, se o paciente se queixa, ele fica incomodado...
ISTOÉ – Mas o sr. não acha que ele tem obrigação de
falar com a família?
Cohen – Sim,
mas isso é um passo maior, adiante. Primeiro vamos fazê-lo falar com o doente e
ensinar o paciente a aprender a decidir por si mesmo.
ISTOÉ – Os médicos sabem que perderam parte do status
social?
Cohen – Os mais
antigos não perderam o status. Ainda conseguem ter consultório particular, ganhar
bem. Os mais jovens é que perceberão isso de forma mais intensa. Provavelmente
não terão consultório particular, trabalharão para uma instituição pública ou
para um seguro médico, em que a relação médico-paciente estará influenciada por
um terceiro. E isso é uma perda de status. Sua
autonomia vai para o espaço.
ISTOÉ – E que prejuízo essa perda de autonomia traz
para o paciente?
Cohen – Quando
ele precisa trabalhar em três, quatro empregos, ele já perdeu autonomia. Já
está a serviço dos empregos. E isso vai se refletir na qualidade do
atendimento. As vítimas serão o paciente e ele próprio. Mas o profissional
ainda não percebeu que também está perdendo. Se tem de trabalhar dessa forma,
provavelmente atende muito mais pacientes do que poderia, provavelmente não se
atualiza o quanto deveria. Porém, ele ainda acha que é um problema da sociedade
e que ela o resolverá. Mas o médico é que terá de dar um basta nisso.
ISTOÉ – O sr. acha que os médicos não perceberam que
cabe a eles iniciar essa mudança?
Cohen – Cabe a
eles também se responsabilizar por isso. A sociedade os culpa pelo mau
atendimento. Eles podem até ter parte nisso porque acabam aceitando, porém é o
Estado que paga mal, não dá estrutura de trabalho. Há outras responsabilidades.
A questão é começar a dividi-las. Estamos olhando para os médicos e dizendo:
vocês têm de repensar sua vida.
ISTOÉ – Eles têm de discutir essa situação?
Cohen – Sim.
Realizar uma reflexão em
conjunto. Como não têm tempo de atender o paciente, eles
pedem mais exames para ter mais segurança. Isso quebra muito a relação com o
doente. Outra coisa: eles sabem que a alocação de recursos para a saúde é muito
malfeita. Mas não se questionam sobre essas questões.
ISTOÉ – Eles também são passivos?
Cohen – Eles
ainda não perceberam a mudança social da função do médico. E também não se
imaginam fazendo outra coisa. Isso talvez os assuste e os impeça de exigir
mais. Se eu perder isso, o que vou fazer?, podem indagar. Não entendem que
essas questões deveriam ser discutidas e revistas com abordagens éticas, com
posturas, trocas de valores. No trabalho que fizemos, os médicos disseram
gostar da profissão, mas percebemos que entre o gostar e a realidade não há coerência.
Basta olhar quantas horas eles trabalham, quantos empregos têm. Se gostassem da
profissão como dizem, não a estariam exercendo tão mal.
ISTOÉ – O que esperar do médico no futuro? Ele será
mais voltado para a máquina do que para o homem?
Cohen – Sim, mas o médico tem de aprender a lidar com essa questão.
ISTOÉ – O sr. fala de um modelo implantado na melhor
faculdade de medicina do País. Mas e no resto?
Cohen - Fico angustiado com tudo isso. Afinal, sou um velho médico. Entrei por uma questão humanista. Considerava este trabalho uma vocação. Acho que, para ajudar a resgatar a missão do médico e lembrá-lo da finalidade básica da medicina, o da assistência ao doente, é preciso haver mais discussão sobre o assunto. Foi o que fizemos aqui na faculdade. Temos disciplinas com conteúdo humanista, psicologia médica, o médico como cidadão, por exemplo.
Cohen – Vamos
discutir com todos e trocar idéias sobre esse tema.
Para saber mais:
DE MARCO. M. A (orgs) A face humana da medicina. Casa do Psicologo; São Paulo, 2003.